A revista The Guardian britânica lançou nesse mês de julho um artigo especial sobre o transplante de microbiota fecal, demonstrando que esse tipo de tratamento está cada vez mais consolidado na área da saúde.
Para elucidar seu ponto, o autor do artigo traz o caso de Ray, motorista inglês aposentado, que sofria de problemas cardíacos genéticos. Ray era hospedeiro de trilhões de micróbios que viviam em seu corpo, assim como nós, na medida que Ray foi envelhecendo, seus micróbios também foram mudando. No entanto, com o passar do tempo, seus genes e seu microbioma intestinal começaram a lutar entre si, causando múltiplas doenças crônicas. Eventualmente, Ray desenvolveu um tipo de leucemia que o deixou extremamente frágil.
Ray recebeu tratamento com antibióticos devido a uma pneumonia. Apesar de sua sobrevivência inicial, ele desenvolveu uma série de complicações, como diarreia, náuseas intensas, dor abdominal, desidratação e dificuldades respiratórias, devido a um desequilíbrio causado pelos antibióticos em seu intestino.
O que aconteceu com Ray é que o uso severo de antibióticos fez com ele fosse diagnosticado com infecção por Clostridium difficile. A infecção estava causando sérios danos em seu intestino, e após o tratamento inicial com antibióticos, a infecção persistiu. Neste caso, o transplante de microbiota fecal é uma opção de tratamento benéfica para pacientes que sofrem com recorrências da infecção.
Apesar de relutar, Ray concordou em participar do estudo do Dr. Ben Mullish, que para realizar o transplante de microbiota fecal fazia uma busca por doadores fecais, triagem rigorosa e a existência de uma indústria dedicada a fornecer FMT congelados. As amostras fecais são então diluídas, filtradas e transferidas para uma garrafa estéril. Em seguida, essa microbiota é administrada em Ray durante uma colonoscopia, onde um telescópio flexível é usado para introduzir as bactérias benéficas no cólon.
O artigo conta que, em outro estudo, o gastroenterologista holandês Josbert Keller e sua equipe no Amsterdam Medical Centre randomizaram pacientes com recorrência de Clostridium difficile em três grupos. O primeiro grupo recebeu vancomicina, uma limpeza do cólon usando um laxante forte, e um transplante fecal. O segundo grupo recebeu vancomicina e a limpeza do cólon, e o terceiro grupo recebeu apenas vancomicina. O grupo do transplante fecal teve resultados muito melhores do que os outros dois grupos, e o estudo teve que ser interrompido antecipadamente, pois foi considerado antiético continuar.
Apesar dos resultados promissores, ainda estamos em busca do que exatamente causa essa melhora nos receptores da doação. Destaca-se que o transplante restaura o metabolismo da bile, o que bloqueia a germinação do C. difficile e controla a infecção. É possível também que o transplante realize um processo de biorremediação, no qual os microorganismos do doador eliminam toxinas no intestino do receptor. No entanto, devido à complexidade do microbioma e das moléculas bioativas envolvidas, o transplante pode ser comparado a uma reinicialização completa do software imunológico do intestino.
Está se tornando claro que amostras de alguns doadores são muito mais eficazes do que outras. Esses são conhecidos como "super doadores" e suas fezes parecem conter um ingrediente mágico que as torna especialmente eficazes. No entanto, não entendemos por que isso acontece ou de quem as fezes serão mais eficazes.
Independentemente disso, o transplante está sendo investigado com graus variados de sucesso em centenas de ensaios clínicos ao redor do mundo. Esses ensaios incluem tratamentos para doenças inflamatórias intestinais, síndrome do intestino irritável, obesidade, desnutrição aguda, diabetes, artrite, transplantes de fígado, câncer de pele, doenças autoimunes, Alzheimer, transtorno bipolar, perda de cabelo, depressão, doenças neurodegenerativas e infecções do trato urinário, entre outros.
Ray teve a melhora esperada pela literatura, e três dias após receber o transplante de microbiota, ele já estava fora da cama.
Temos muito para pesquisar, as bactérias presentes no intestino pesam cerca de 1,5 kg e são compostas por cerca de 100 trilhões de células bacterianas, o que é equivalente ao número total de células que compõem o corpo humano. Essas bactérias falam milhões de linguagens moleculares diferentes. Estamos apenas começando a mapear toda a vida microbiana no vasto ecossistema dentro de nossos corpos e a entender como ele nos conecta ao mundo ao nosso redor.
Neste mundo peculiar, as fezes se tornaram uma terapia, usada para repor nossos delicados ecossistemas internos, que estão sendo perdidos tão rapidamente quanto estão sendo descobertos. Mesmo com os avanços em metagenômica e bioinformática (biologia computacional), pode ser que não consigamos contar e nomear todos os micro-organismos benéficos que vivem dentro de nós antes que eles desapareçam, sofram mutações ou evoluam para algo muito diferente.
Embora o transplante seja aprovado apenas para o tratamento da C. difficile recorrente, seu impacto em outras doenças crônicas ainda não está claro. A compreensão sobre como o transplante funciona e seus riscos a longo prazo ainda é limitada, o que impede sua ampla utilização na prática clínica. Porém, estamos decifrando a linguagem molecular do microbioma humano, um dos grandes desafios da medicina moderna, e o transplante fecal é uma ferramenta crítica e fascinante que está sendo usada para desvendar esses segredos.
Comentários